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11/08/2021

Nas trilhas da Patagônia; A metáfora do céu ao inferno

Um dia o sedentário encontrou a corrida. Era um fuga, uma maneira de preservar a sanidade e a saúde. De se libertar dos vícios da noite e se reeducar em todos os âmbitos. Da corrida, ele “foi encontrado” pelas montanhas e deste encontro, nasceu uma paixão verdadeira.

Este caso de amor segue sendo escrito, e quero muito poder dividir com vocês alguns capítulos desta história..

…E como sonho é sonho, lá estava eu, nas montanhas da Patagônia, alinhado para uma corrida de 45 km pelas trilhas gélidas de San Martin de Los Andes.

O pensar que já tinha experiência para encarar temperaturas tão extremas em altas montanhas pode ter sido o fator decisivo de ter feito sair-me muito bem, porém levando o corpo aos limites.

Quase 5 horas de competição e eu cruzava aquela linha de chegada quase congelado, completamente em êxtase. Eu era o primeiro brasileiro a cruzar a linha de chegada naquele ano, naquela distância.

Talvez o medo de morrer congelado tivesse sido o grande impulsor por me ter feito correr tanto naquela ocasião.

A euforia tomou conta e o desejo por me aventurar por aquilo novamente foi tamanha que resolvi arriscar “um pouquinho” mais.  A inscrição do próximo ano seria de 45 para 110 km, com um desnível acumulado de 15.000

O desafio por si só já exige o mais alto grau de treinamento e disciplina mas agora some a isto uma noite todinha na neve, com chuva e temperaturas negativas. Este era o cenário que enfrentaríamos naquela madrugada.

Com largada ás 19 h, partimos para este desafio congelante. Era um mar de lanternas acesas pelas montanhas, formando um cenário de aventura e temor pelo respeito que se deve a elas

Neste ano, mesmo melhor agasalhado e equipado que no ano anterior, é impressionante como a Patagônia consegue te “colocar” em seu clima e te cobrar cada passo que você dá para cruzá-la.

Cumprindo a promessa de permanecer os primeiros 30 km ao lado do grande amigo Luiz Viana de Cuiabá ( o medo dele era muito justo em morrer congelado nas montanhas), esta primeira parte da prova foi mais lenta e criou uma grande onda de ansiedade.

À partir daí eu tinha posições para conquistar, muito espaço para evoluir, mas a solidão para enfrentar (assim como meu amigo).

A esta altura já havíamos enfrentado muitas ascensões, mas a primeira grande montanha já se mostrava imponente: O grande “Colorado”, com seus 1780 mts de altitude, conjugado com um vento de mais de 80 km por hora e uma chuva de flocos de neve que é a combinação perfeita para te fazer temer por sua vida e querer passar por ali o mais rápido possível e sair logo daquele “inferno gelado”.

Não foi ruim. O medo de enfrentar uma forte chuva com temperaturas piores ainda me fizeram passar rapidamente por ali e ganhar tempo e posições. Ponto negativo: Toda energia que havia gasto para esta empreitada iriam ser cobradas logo adiante.

2ª grande montanha, não tão alta quanto a primeira porém, longe de ser mais fácil. Devido a sua dificuldade técnica, vegetação densa e molhada, criando pontos de charcos para travessia, era mais uma dose de sofrimento e sentimento incrível da capacidade de suportar a dor e romper obstáculos. Lá estava mais um cume alcançado.

Ao chegar ao PC no KM 50 havia tudo de convidativo para finalizar a prova ali. Eram empanadas preparadas em fornalhas a lenha, sopa e chocolate quente, café, um grande aquecedor… Talvez um alento para o gigante “Quilanlahue” que já se mostrava a nossa frente. Uma imponente montanha que subiriam 650 metros em apenas 3 km. Com 45 graus de inclinação e talvez o pior que eu já tenha visto na vida até ali, ela te obriga a fazer força para se manter no mesmo lugar. Você dá um passo para frente e escorrega 3 para baixo, num solo arenoso e sem nada para se segurar. O frio? Era um inimigo implacável, tendo como seu “aliado” o vento de quase 100 km por hora. Não haviam “cordas de ringue” nesta batalha para descanso. Até mesmo um golpe que te levasse à lona era desejado, para ter seus 08 ou 09 segundos de contagem para recuperar o fôlego.

Os sentimentos em frio extremo são estranhos. Eles te fazem ter sono, medo, dores e mais medo. Tudo dói e você só quer que o sofrimento acabe logo. Você começa a ter vontade de dormir. É o corpo querendo hibernar e te proteger. Mal ele sabe que esta decisão é fatal e você tem poucos segundos para voltar a sanidade e não se render ao teu cérebro. Neste momento tudo que pensava era: “Tenho de passar por mais esta montanha e parar. Isto não é pra mim. Chegarei até o próximo PC e entrego os pontos.

Após atingir o cume, a vida renasceu. Desci muito rápido, até mesmo para sair das temperaturas negativas da altitude e ter meu próximo momento de alento no PC (será que haveriam empanadas?). Seria uma boa recompensa.

Ainda resolvi investir mais um ponto: – Vamos lá, Sergio, mais uns 8 km, você consegue.

Era inútil. Minha mente só pensava em um lugar tranquilo para o descanso e se recuperar da “surra gelada’ que havia tomado por toda madrugada. A Patagônia havia me massacrado e jogado à lona.

Ao chegar ao PC 66 eu já havia decidido:

– “Estou parando.”

– No, No puedes, tienes que completar la carrera.

– Não quero!

– Que pasa?

– Estou com fome, frio, vontade de morrer, meu cabelo dói, aposto que a foto de meu RG dói…

Neste momento um Brasileiro que estava na prova das 100 milhas (meu Deus, é sério isto, 100 milhas!) tentou me convencer, mostrando o quão sofrido seria esta decisão.

Foi inútil mais uma vez. Ali estava eu, sem vontade alguma de correr. Restava esperar o carro de apoio para me levar até a linha de chegada e de lá partir para meu hotel. “Tudo que pensava era: Ainda pego o café da manhã e estou com muuuita fome.”

E foi assim que ficamos com contas a acertar, eu e as montanhas da Patagônia.

A mochila voltou leve, vazia de alegrias, sem a tão esperada medalha, mas com muito aprendizado.

Nosso encontro estava marcado para abril mas foi adiado pois estamos sofrendo uma pandemia mundial. Mas sei que nos encontraremos e desta vez eu estarei mais preparado para ela, suas belezas, surpresas e desafios. Mais preparado para sofrer, na verdade.

As ultra corridas tem disto. São metáforas da vida: Você sabe que em dado momento as coisas sairão do controle, o sofrimento e dores virão e você tem de estar preparado para eles (embora nunca por completo).

E que venham novas histórias.

Sergio Garcia

(11) 2625-2999